A MARIA MOLE DESPREZADA

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Era algum dia de 1966, 67, perto das 4 da tarde. Como o amor não escolhe dia e hora, aqueles momentos foram de total arrebatamento para o coração do Victor. Apaixonado que estava pela Marisa, uma jovem rechonchuda, moradora de um sobrado na Rio Bonito, convalescente de uma operação de apêndice. O Victor dizia que não gostava de mulheres magras.Victor foi uma daquelas figuras carimbadíssimas que todo bairro tem, mas o Pari tem mais. Descendente de italianos, apreciador e cantor de ópera, funileiro nas horas vagas, Victor era um errante, para não dizer trambiqueiro e picareta. Mas, acima de tudo, um artista, e certamente seria escultor se tivesse tido oportunidade para tanto.

Esse talento era facilmente percebido pela perfeição com que deixava as portas e paralamas dos carros que pegava pra consertar. Se não conseguisse alisar a lata amassada no martelo, não tinha dúvidas: enchia de massa plástica. E como leigo não entende de qualidade em funilaria, era facilmente enrolado pela arte do Victor.

Pois bem, agora quem estava enrolado era ele, só que pela flecha de cupido. Queria demonstrar sua paixão pela Marisa de duas formas: pela ópera, que cantava com um vozeirão de assustar pedestre, e com uma caixa de maria-mole que comprou fiado na fabriquinha do César, um português que produzia doces num galpão no  Pari.

A caixa podia conter cinqüenta marias-moles, metade branca, metade preta. Ele pediu a nota fiscal, falsificou o valor, escrevendo o número um na frente do setecentos, de forma a valorizar o presente. Passou goma arábica no verso da nota e colou em cima da caixa. Certamente para que a Marisa não duvidasse do seu amor nem da sua generosidade.

Ato contínuo, mandou-me entregar o regalo. Combinou que enquanto eu levasse a caixa, ele ficaria cantando ópera na calçada em frente ao sobrado da Marisa. Uma cena própria para o Teatro Municipal.

A Marisa e sua mãe moravam em um sobrado, desses que em baixo fica uma loja. Toquei a campainha, a mãe pôs a cara na janela e perguntou o que eu queria. Respondi que tinha um presente pra filha dela. Ela me pediu pra esperar um pouco e, lá do alto, puxou a cordinha que destrincava a porta. Do outro lado da rua, o Victor começou a cantar. Subi a escada. Entreguei a caixa dizendo que era “um presente do Victor para a Marisa, com votos de pronto restabelecimento”. Desci devagarinho, ouvi gritos de “sem-vergonha, safado, cara-de-pau, putanheiro, cafajeste”, e tudo o que fosse adjetivo que alguém poderia usar para acabar com o mais puro romance.

Quase caí da escada, correndo. Diante da cena, o “Pavarotti” parou de cantar. Mal pus os pés na calçada novamente e, pela janela, a mãe da Marisa jogou a caixa na minha cabeça, com nota fiscal e tudo. Logo eu, que fui apenas o portador, também tinha entrado na lista dos dez mais odiados daquela casa.

Nunca se comeu tanta maria-mole de graça no Pif-Paf como naquela tarde.

Conto escrito e enviado pelo publicitário Ricardo Eduarte Pereira.

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