São Pedro era o dia mais aguardado pela meninada da Vilinha, no Alto do Pari. Primeiro porque significava o último dia de aulas do primeiro semestre, ou seja, as férias começavam em grande estilo – com a maior das festas juninas. Maior, não porque Pedro merecesse mais que João ou Antônio, mas porque toda a lenha pra fogueira que se juntava, todo o arsenal de bombinhas, rojões, trepa-moleques, vulcões, estrelinhas, biribinhas, morteiros, balões, barbantinhos e tudo o que fosse usado pra fazer barulho, brilhos, luzes e fedor eram gastos neste dia. Depois não teria mais graça. A não ser em ano de Copa do Mundo, como foi a gloriosa campanha do Brasil na Suécia, em 1958. Lembro direitinho. Tinha até balão feito de jornal.
Mas toda a festança que havia em São Pedro era apenas uma amostra da amizade e solidariedade entre a vizinhança que morava na Vilinha – um cortiço na Rua Estiva -, com casas muito modestas, formando uma ferradura, em volta do sobradão, que por sua vez fora dividido em várias pequenas moradias. Outrora a casa grande pertencera ao patriarca da família Christofaro. Com sua morte, e depois da viúva, os filhos do casal construíram casas de dois cômodos para alugar a quem quisesse. Tinha quarto tão pequeno que “para espreguiçar precisava abrir a janela”. Quatro privadas escuras e dois chuveiros frios eram comuns a todas as famílias. As casas tinham água encanada, mas não coleta de esgotos. Usavam um balde embaixo da pia. Quando o balde enchia, o conteúdo era jogado no terreiro. O tanque também era comum e não havia cobertura contra a chuva para quem lavasse roupas. Apesar da insalubridade e da falta de conforto, até onde era possível, a população da Vilinha era saudável e feliz.
Nossa Vila era um pequeno retrato da transformação pela qual passava São Paulo naquela década de 50 – cidade que abrigava migrantes de tudo quanto fosse canto do país e do mundo. Moravam ali: árabes, alemães, espanhóis, italianos – fugidos dos conflitos na Europa -, e ainda: nordestinos – assim como meu pai -, e gente do interior de São Paulo – minha mãe. Conviviam Ella, Ade, Helmut, Zafir, Charif, Canaã, Eduarte, Monteiro, Wakers, Mosconi, Sanchez, Mustafá, Quebrete, Cassiano Alves, Silva, Nunes… Havia do negro mais retinto à ariana mais clara. A Antropofagia, revelada pelos modernistas na Semana de Arte de 22, acontecia ali, para quem quisesse ver, transformando tudo em cultura brasileira.
Embora as origens e os motivos das migrações fossem as mais diversas, todos na Vila tinham uma coisa em comum: eram pobres como ratos. Havia operários, funcionários públicos, empregadas domésticas, manicures, garçons, torneiros-mecânicos, bicheiros, jogadores de baralho, gente sem qualquer especialização e, sem dúvida, também desocupados. E como eram pobres, eram unidos. Assim, naquela pequena Torre de Babel – de cerca de 60 a 70 pessoas -, conviviam as raças, os sotaques e as culinárias mais diferentes.
Uma das coisas que faziam com que todos participassem de um único cardápio, tradicional, era a comilança da véspera de São Pedro. A criançada, animada para fazer a festa, ia de casa em casa perguntar o que cada família iria preparar para a grande noite, além dos doces-de-venda (paçoquinha, pé-de-moleque, doce de abóbora, de batata doce e maria-mole), as mulheres preparavam bolo de fubá, enroladinho de goiaba, queijadinha, canjica, arroz-doce, pipoca, quentão, cachorro-quente, tortas salgadas, cuscuz, sanduíche de carne-louca – esse era sempre minha mãe quem fazia.
A Vila ficava toda enfeitada, o mastro com os três santos, pau-de-sebo, bandeirinhas, balões chineses, foco de luzes enjambrados para fora das casas, bancos, cadeiras tudo isso ao redor de uma grande montanha de troncos, galhos, tábuas (sobras de construção), tacos de assoalho, tocos, toquinhos, cavacos e móveis velhos, armados no centro do terreiro… Tudo o que havia de madeira que pudesse ser queimada, era.
São Paulo ainda não tinha as campanhas aconselhando a não soltar balões. Durante o dia já se via muitos deles. Também fazíamos os nossos. À noite, a quantidade de balões disputava com a de estrelas. Perdíamos a conta. De vez em quando um deles caia perto da Vila. Quem sabe o que é correr atrás de balão conhece. Todo mundo vai atrás. No meio daquela correria, até cachorro acompanha o dono. Era a maior folia! E para puxar o balão para si cada um empunhava um pedaço de pau. Não raro era rasgado. Atiravam paus, pedras de um lado para outro. Numa noite um balão resolveu cair bem em cima do murão, que dividia os territórios separando duas turmas rivais no Pari. Na hora do “É meu! É meu!”, “Rasga! Rasga!” Cheguei a ver um cachorro pequinês voando, sendo atirado do nosso lado para o outro – como um míssil terra-ar -, para dentro do balão, que caiu do lado de lá, com tocha acesa, ganidos e tudo. Na volta para suas fogueiras se ouviam sempre relatos épicos – “Nossa turma foi mais valente. Demos mais paulada que eles.” E vem daí a célebre frase – “Rasguei a boca do balão…”.
Não havia Dia de São Pedro sem reza. Uma imagem de Nossa Senhora ia de casa em casa onde homens, mulheres e crianças acompanhavam o Terço. A dona Maria recebeu o Terço em sua casa. Ela morava no porão do sobrado. Lá pelo meio da ladainha, todo mundo concentrado na reza, a dona Maria deu um baita tapa na parede para matar um pernilongo, assustando a todo mundo. E falou, olhando para a mão com a mancha de sangue – “esse é dos pretos”. Riso geral! Já ninguém sabia em que parte da reza tinha parado.
A festa ia até a madrugada. Na medida em que a fogueira diminuía, os bancos e cadeiras iam se aproximando do braseiro. A partir dessa hora, além de pular a fogueira a gente assava milho verde e batata doce. As batatas se misturavam com os tocos queimados. Vira e mexe alguém tentava abrir um carvão de madeira, pensando tratar-se de batata doce. Principalmente os que exageravam no quentão.
Em volta do fogo se contava tudo quanto é história. As que mais me interessavam eram as “histórias de medo”, que a crendice e a superstição alimentavam. Tinha aquela do “filho que bateu na mãe e quando morreu o braço agressor não baixava, impedindo de fechar o caixão. Uma surra de vara de marmelo virgem fez o braço do defunto abaixar”. Ou do ladrão de sepulturas, que “entrou no cemitério numa noite chuvosa, foi bater uma estaca na terra que cobria o túmulo e, sem perceber, com a estaca prendeu a própria capa de chuva. Tentou levantar, não conseguiu. Aterrorizado, teve um piripaque e morreu ali mesmo”. Para mim estas histórias eram assustadoras, mas irresistíveis. Com medo, e com frio, eu tirava os pés do chão, punha em cima da cadeira e ficava agarrado ao braço da minha mãe. Chegava a dormir naquela posição, ouvindo ao longe aquele vozerio de vários sotaques misturando realidade com lendas e fantasias.
O local da fogueira ficava quente até o dia seguinte. Como junho é mês gelado, eu gostava de ficar ali. Lembro que cheguei a dormir no quentinho daquela terra.
Bate uma saudade..
História contada pelo meu amigo desde os 13 anos de idade e que hoje é um grande profissional da comunicação em Santa Catarina, o Ricardo Eduarte .
Um dos amigos que compartilhei várias histórias, de paqueras, futebol, bailinhos
e muita conversa, muito bate-papo descontraído, com gargalhadas, muitas vezes varando as madrugadas parienses com a turma do Pif. Tenham certeza que nós temos muitas histórias para contar, não percam !